sexta-feira, 8 de maio de 2009

Sobre a bandeira de Lisboa

A bandeira de Lisboa, tal como "definitivamente" estipulado em 1940 por proposta da Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, é assim descrita:
Gironada de branco e negro de oito peças [os "triângulos"], com o brasão de armas sobreposto. Cordões e bolas de prata e negro. Haste e lanças douradas [estandarte]. Como a peça principal das Armas é o barco, que é de prata e negro, a bandeira é branca, representando a prata, e a negro.


Quanto ao brasão:
Armas de ouro, com um barco exteriormente de negro realçado de prata, e interiormente de prata realçado de negro, mastreado e encordado de negro, com uma vela ferrada de cinco bolsas de prata. A proa e a popa rematadas por dois corvos de negro afrontados. Leme de negro realçado de prata. O barco assente num mar de sete faixas onduladas. Coroa mural de ouro de cinco torres. Colar da Torre e Espada. Listel branco com os dizeres ‘Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa’ a negro.




Aquela que é hoje a bandeira municipal do Concelho de Lisboa tem origens antigas, entrelaçadas com alguns dos mais importantes momentos da história da cidade (e em simultâneo, do País) mas também, inevitavelmente, com as referências religiosas que marcaram aqueles acontecimentos e a própria sociedade, ao tempo em que ocorreram.
Na revisão de 1940, após séculos de sucessivos golpes de "heterodoxia", pretendeu-se um regresso à heráldica original, na medida do possível, para - entre outras razões - preservar os significados originais. Por esta mesma razão, que é válida quanto baste e porque esse regresso foi, em larga medida, conseguido, não irei tratar aqui da evolução dos símbolos, entendida como um prolongado e sinuoso desvio... ainda que de inegável interesse (para outra ocasião e outra perspectiva).

Mas, ainda antes de passar às origens, permitam um pequeno e leve comentário sobre o aspecto visual da bandeira, e o que suscita. Desde logo, uma cor parece ter predomínio estranho, se ignorarmos origens e significados: o negro (se não reparou, leia de novo a descrição inicial e conte).
Para uma cidade poética e insistentemente associada à luz, à claridade, o negro apela para as suas sombras, para os seus recantos, para a noite... ou para o luto. E por luto... estão lá os corvos, fúnebres sentinelas que acompanham os restos mortais do Santo.
Temos um contraste entre o que em Lisboa se contrasta, mas também se complementa: a alvura da cidade, do seu casario, e das igrejas; mais o negro da estimada e afamada melancolia, cantada em fados, entre outros tratos. A aparência e o sentir.
Se olharmos para as origens, porém, nada disso importa. Poder e Fé, por esta ordem, falam mais alto. Afinal, não é do que tratam as bandeiras?

Sendo certo que sofreu várias transformações pelo caminho (as quais não vou tratar neste artigo, repito), pode dizer-se com alguma segurança que a actual bandeira de Lisboa tem origem naquela que terá surgido após a "revolução" ou "crise" de 1383-1385 (conjunto bandeira e brasão, note-se, pois o brasão é anterior). A melhor prova temo-la na bandeira de Ceuta, cidade que mantém desde a sua conquista (1415) até hoje uma bandeira igual à de Lisboa (com excepção do brasão, que no entanto é o de Portugal). Reza a crónica de Azurara que, uma vez tomado o bastião magrebino, El Rei D. João I pediu (ou ordenou) a João Vasques de Almada que colocasse a bandeira da cidade de Lisboa, que este trazia, no alto do Castelo (supostamente à falta de estandarte real). De notar o significado particular deste acontecimento para o estatuto da cidade de Lisboa, em novo contexto histórico.

Que o brasão - de S. Vicente - tem origem anterior, é certo, e já lá vamos. Mas, sobre a bandeira propriamente dita ("gironada" de negro e branco), consta que foi o próprio João da Regras que sugeriu o formato, à imagem do escudo da Ordem de São Domingos, por ter sido no importantíssimo e central mosteiro daquela ordem que o povo de Lisboa aclamou o Mestre como "Regedor e Defensor do Reino". Com efeito, as oito peças negras e brancas estavam no escudo da Ordem de São Domingos (também conhecida como Ordem dos Pregadores). E lá continuam, até hoje...
Quanto à relação entre o Doutor João das Regras e a Ordem de S. Domingos, há mais que contar.
Como uma de várias recompensas pelos serviços prestados, D. João I doou ao jurista os terrenos da Quinta de São Domingos, onde viria a erguer a igreja de São Domingos de Benfica, onde aliás estão ainda hoje os restos mortais de João das Regras. Não bastando isto - mas é facto menos divulgado - saiba-se que foi na cidade de Bolonha (onde João das Regras se formou) que faleceu o próprio São Domingos, pouco mais de 150 anos antes. Isto depois de ter tornado aquela cidade uma verdadeira "capital" daquela ordem. Acasos? Não creio, seguramente.
Devemos às andanças de João das Regras por Bolonha o facto de termos a bandeira negra e branca? E, algures no Largo de São Domingos e actual igreja, poderemos recordar o local inspirador...


Escudo da Ordem de S. Domingos (ainda actual)


Passo então à origem do brasão... sumariamente, pois há abundante literatura, como houve abundantes variações do mesmo, ao longo destes séculos.
A famosa barca de São Vicente, com os corvos, é símbolo que remonta aos primeiros tempos da cidade após a conquista aos mouros, mais concretamente ao momento em que chegaram as relíquias do Santo à cidade (1173) - assunto que tenho abordado com frequência neste blogue. Tendo em conta que o primeiro foral foi concedido em 1179, terá sido por esta altura que o Concelho foi autorizado a utilizar os símbolos vicentinos no selo da cidade - do qual chegou até nós um exemplar datado de 1233.
É de lembrar que a intenção de Afonso Henriques, de resgatar as relíquias, era anterior à conquista de Lisboa, e poderia ter favorecido Braga ou Coimbra. No entanto, goradas as anteriores tentativas, coube a sorte a Lisboa. Segundo relato coevo (os Miracula Sancti Vincentii, escritos entre 1173 e 1185), foi o próprio São Vicente que teve "preferência" por Lisboa, um "milagre" (a par de outros) com significado bem mais terreno (ver Picoito, 2008):

(...) porque a ele [S. Vicente] lhe aprouvera ser venerado de preferência pela gente de Lisboa e a intenção do rei era, pelo contrário, depositá-lo em Braga ou em Coimbra, já que a misericórdia divina ainda não lhe entregara Lisboa (...)

Por intervenção sobrenatural ou não, não se deu o caso (ou acaso), com o qual S. Vicente, os corvos e a barca ficariam arredados da história e dos símbolos lisboetas (estariam presentes em Braga ou Coimbra?).


O Selo de 1233


Das múltiplas variações que sofreu o brasão, há que referir que a dado momento poderá ter incluído a imagem do próprio Santo. Assim sugere um documento relativo à escolha do santo padroeiro da cidade do Funchal, por exemplo, onde se refere expressamente que o dito padroeiro (São Tiago Menor, o ápostolo) deve figurar no brasão da diocese tal como São Vicente figurava então na bandeira de Lisboa. Ou seria apenas na bandeira da diocese? Teixeira de Carvalho e Virgílio Correia, nos seus "Subsídios para a História da Arte Portugueza" (1922), referem:

A Bandeira de Lisboa no Reinado de D. João I tinha huma pintura de S. Vicente, Protector da nossa Capital e consta que esta Bandeira fora arvorada por João Vasques de Almada no Castello de Ceuta, quando o mesmo Rei tomou aquella Cidade.
E até 1383, teve a cidade alguma bandeira? Há quem assegure que sim, e é muito provável. Na própria "Crónica de D. João I", de Fernão Lopes, temos referências a bandeiras "regionais", empunhadas em plenas pelejas - não só da cidade de Lisboa, mas também de várias vilas de Portugal (como a de Elvas, por exemplo). Não parece que tal costume fosse uma das inovações militares da época.
Mas quando é que essas bandeiras primeiro apareceram, a par de bandeiras senhoriais, bandeiras das ordens militares, religiosas e, enfim, da bandeira régia? Fica a questão em aberto.
E antes da reconquista cristã (nos períodos muçulmano e romano, por exemplo)? Que símbolos teve a cidade? É outra questão em aberto... sem quaisquer vestígios até à data que permitam esboçar uma resposta.

Quanto ao brasão (esse sim, anterior), também há quem fale num corvo (não dois)... e uma águia. É curioso, pois as lendas falam de um corvo apenas... quer a lenda do martírio (em Saragoça), quer certas versões da lenda da viagem das relíquias (desde o Algarve até Lisboa). Não cabe aqui aprofundar a questão dos corvos e respectiva simbologia (tema vastíssimo!). Já referimos a origem que consideramos verosímil e fiável, por ratificação ou ordem de Afonso Henriques, mas temos também bastantes provas da utilização "pública" daqueles símbolos nas décadas seguintes. A lápide do Chafariz do Andaluz (1336) é talvez a mais importante (das ainda hoje existentes) e a evidente semelhança com o actual símbolo reforça, uma vez mais, que a revisão de 1940 significou um regresso às origens. Nesta ocasião refere-se expressamente que o modelo naval utilizado "deve figurar como uma estilização das linhas gerais de um barco e não como um tipo de construção naval de acordo com o desejo de cada época" (após a utilização dos mais variados tipos, desde galés romanas a naus, caravelas e galeões - por aquele andar hoje teríamos fragatas?). Assim, a semelhança com o Chafariz é involuntária? Ou teve a mesma idéia - feliz, diga-se - o escultor de 1336?
Quanto aos corvos... são dois, pois.


Pormenor do Chafariz do Andaluz (1336): a referência


Como referi no início, dois momentos importantes da história de Lisboa inspiraram a bandeira da cidade. O primeiro, de conquista, derrota do poder mourisco, consolidação do Reino de Portugal, afirmação do Rei entre a Cristandade, consagração de Lisboa - "reconvertida" - à mesma Cristandade, conciliando a fé antiga de moçárabes e portugueses, sob os auspícios de São Vicente.
Quanto ao segundo momento, temos grandes diferenças, mas igual peso na história. Trata-se de outra "era" que começa, como refere Fernão Lopes, algo que tem tido múltiplas interpretações (e não raramente equívocas do ponto de vista histórico). Mas, para o caso de Lisboa, penso que não erraremos muito ao considerar que a crise de 1383-85 ficou marcada pela afirmação da cidade, do seu poder, e pela firme determinação dos lisboetas, sem as quais teria fracassado o movimento do Mestre, Nun'Álvares, João das Regras, Álvaro Pais e respectiva companhia. Ali, com a benção de S. Domingos de Gusmão e dos seus frades, de negros mantos (a condizer).
Se no primeiro momento tivémos conquista, no segundo tivémos defesa. Conquista e defesa de Lisboa, mas também conquista e defesa da independência de Portugal.

Gostaria ainda de mencionar alguns outros aspectos e momentos históricos associados à bandeira de Lisboa. Já referi o episódio de Ceuta, que tomou bandeira semelhante e a manteve, mesmo depois de 1640. E por falar em 1640, logo após o sucesso dos conjurados, no Paço (e para mal do Vasconcellos), foi o povo invadir o Senado de Lisboa, onde o respectivo presidente lhes entregou a bandeira da cidade, para proceder à proclamação do novo rei (D. João IV).
Outro facto, bem mais recente, é relacionado com a "reforma" da heráldica municipal efectuada nos anos 30 do Século XX. Foi com base na bandeira de Lisboa - e portanto, indirectamente, no brasão dos dominicanos - que ficou estabelecido que todas as bandeiras municipais (municípios cuja sede seja cidade) deveriam ser também "gironadas", com as mesmas partes (com cores próprias, naturalmente). A centenária bandeira foi modelo para todas as outras...


A bandeira de Ceuta



Fontes:
Margarida Fragoso, "O Emblema da Cidade de Lisboa", 2002
Pedro Picoito, "A Trasladação de S. Vicente. Consenso e Conflito na Lisboa do século XII", Revista Medievalista, nº4, 2008
Marina Tavares Dias, "Lisboa Misteriosa", 2004
Teixeira de Carvalho e Virgílio Correia, "Subsídios para a História da Arte Portugueza - Collecção de memorias (...)", 1922


Online:
Câmara Municipal de Lisboa (http://www.cm-lisboa.pt/?idc=2)
Bandeiras (http://www.tuvalkin.web.pt/terravista/Guincho/1421/bandeira/pt-lsb.htm)
Igreja de São Domingos (http://www.isdomingos.com/index.asp?art=6534 )