Mais de 300 anos antes dos Descobrimentos, e das famosas partidas da praia do Restelo, houve oito lisboetas que se lançaram ao mar, animados pela mesma vontade de descobrir. Assim nos conta Muhammad [Maomé] Al-Idrisi (ou simplesmente, Edrisi), notável geógrafo do século XII, a propósito da sua descrição da cidade de Lisboa:
«[...]
Lisboa está construída na margem setentrional do rio Tejo; é aquele sobre o qual está localizada Toledo. A sua largura depois de Lisboa é de 6 milhas, e a maré faz-se ressentir violentamente. Esta bela cidade que se estende ao longo do rio, está limitada por muralhas e protegida por um castelo. No centro da cidade há fontes de água quente tanto no inverno como no verão.
Situada nas proximidades do Oceano, esta cidade tem à sua frente, na margem oposta, o forte de al-Ma’dan [Almada], assim designado porque o mar lança grãos de ouro na margem. Durante o inverno os habitantes da zona vão junto do forte à procura deste metal e isto dura até que acaba a estação rigorosa. É um facto curioso que nós mesmos testemunhámos [prova da presença de Idrisi em Lisboa].
Foi de Lisboa que partiram os Aventureiros, aquando da sua expedição tendo como objecto de saber o que continha o Oceano e quais eram os seus limites, como já foi dito. Existe ainda em Lisboa, perto dos banhos quentes, uma rua que se chama Rua dos Aventureiros.
Vejamos como a coisa se passou: eles reuniram-se ao número de oito, todos parentes próximos; e depois de terem construído um navio mercante, embarcaram água e víveres em quantidade suficiente para uma navegação de vários meses. Lançaram-se ao mar ao primeiro sopro de vento de este. Depois de terem navegado durante onze dias ou cerca disso, chegaram a um mar cujas ondas compactas exalavam um odor fétido, escondiam numerosos recifes que eram difíceis de ver. Temendo o perigo, mudaram a direcção das suas velas, correram para sul durante doze dias, e alcançaram a ilha dos Carneiros, onde numerosos rebanhos pastavam sem pastor e sem pessoa para os guardar.
Tendo posto pé nesta ilha, encontraram uma fonte água corrente e perto daí uma figueira selvagem. Apanharam e mataram algumas ovelhas, mas a carne era tão amarga que era impossível de comer. Só aproveitaram as peles. Navegaram ainda doze dias para sul e encontraram enfim uma ilha que parecia habitada e cultivada; aproximaram-se a fim de saber o que era; pouco tempo depois foram envolvidos por barcas, feitos prisioneiros e conduzidos a uma cidade situada no litoral. Desceram e foram conduzidos a uma casa onde viram homens de alta estatura e de cor alaranjada- avermelhada, que tinham pouca barba e mantinham os cabelos longos (não frisados), e as mulheres que eram de uma rara beleza. Durante três dias ficaram prisioneiros numa divisão desta casa. O quarto dia viram vir um homem falando uma língua árabe, que lhes pergunta o que eles eram, porque é que tinham vindo, e qual era o seu país. Eles contaram-lhe a sua aventura; aquele dá-lhes boas esperanças e fez-lhes saber que era um intérprete do rei. No dia seguinte foram apresentados ao rei, que lhe faz as mesmas perguntas e ao qual eles responderam, como já tinham feito no dia anterior ao intérprete, que se tinham aventurado ao mar para saber o que poderia ter de singular e de curioso, e a fim de constatar os seus limites extremos.
Logo que o rei os ouviu assim falar pôs-se a rir e disse ao intérprete: «Explica a esta gente que o meu pai tendo outrora prescrito a alguns dos seus escravos a embarcarem neste mar, eles percorreram-no, em largura, durante um mês, até que, a luz (do céu) lhes faltou, eles foram obrigados a renunciar a essa vã empresa. O rei ordena depois ao intérprete de transmitir aos aventureiros uma magnanimidade da sua pessoa, de forma a que eles ficassem com uma boa opinião dele, o que foi feito. Eles voltaram então à sua prisão, e aí ficaram até que um vento de oeste se elevasse e tapando-lhe os olhos, fê-los entrar numa barca e navegaram durante algum tempo no mar. «Nós andámos», disseram eles, «cerca de três dias e três noites, e atingimos de seguida uma terra onde nos desembarcam, com as mãos atadas atrás das costas, numa praia, onde fomos abandonados. Aí ficámos até ao nascer do sol, no mais triste estado, por causa das faixas que nos apertavam fortemente e nos incomodavam bastante; por fim, tendo ouvido ruído e vozes humanas, nós pusemo-nos a gritar. Então alguns habitantes do país vieram até nós, tendo-nos encontrado numa situação tão miserável, desataram-nos e fizeram-nos numerosas questões às quais nós respondemos pela narração da nossa aventura. Eram berberes. Um de entre eles disse-nos: «Vós sabeis qual é a distância que vos separa do vosso país?» E à nossa resposta negativa, ele acrescenta: «Entre o ponto onde vós vos encontrais e a vossa pátria há dois meses de caminho». O chefe dos aventureiros disse então: wâ asafi (interjeição de desespero: «!»); é por isso que o nome deste lugar ainda hoje é de Asafî. É o porto de que já falámos como estando na extremidade do ocidente.»
Neste texto de Idrisi encontramos, sem dúvida, muito do que veio a contribuir para a gloriosa época dos Descobrimentos, ainda que de forma indirecta. E é curioso e interessantíssimo o facto de terem sido lisboetas os tais Aventureiros, antecessores em façanhas (mas muito dificilmente, antepassados) dos intrépidos navegadores portugueses.
É comum reduzir a importância dos Descobrimentos a saber quem descobriu o quê pela primeira vez (e com isso, frequentemente, reduzir a importância das próprias Descobertas). Nesse sentido, o texto de Idrisi é mais uma peça para o “puzzle”. Não parece suscitar dúvidas que os Aventureiros terão chegado às Canárias, bem como, com grande probabilidade, à Madeira e/ou aos Açores (que tenham chegado à Grã-Bretanha/Irlanda ou à América, como suspeitam alguns, é pouco provável). Mas é também quase certo (por outras fontes) que qualquer um daqueles arquipélagos já teria sido visitado desde os tempos dos romanos, dos fenícios, ou por outros, anteriores àqueles (quem sabe?).
A meu ver, não ficam em causa os respectivos Descobrimentos (Séc. XV), na acepção que considero da palavra. Uma coisa é “achar”, outra é revelar para o Mundo (revelando o Mundo para os “achados”, nalguns casos). E assim, também a meu ver, a época dos Descobrimentos foi mesmo uma época de descobertas, talvez só igualada em importância pela remota (milenar e longuíssima) época em que os seres humanos, partido de África, foram descobrindo pela primeira vez todos (ou quase todos) os recantos deste mundo. Os portugueses redescobriram-no, redescobrindo e pondo em contacto todos (ou quase todos) os descendentes dessa antiquíssima diáspora africana. Como já alguns arriscaram afirmar… iniciámos a globalização (pelo menos a uma escala intercontinental, enfim, planetária).
Voltando à viagem dos Aventureiros, não se sabe com exactidão quando terá acontecido. Que terá sido anterior a 1147, data da conquista da cidade de Lisboa pelos portugueses, é garantia óbvia. Poderá ter acontecido nos séculos imediatamente anteriores a este relato (X, XI), pois o geógrafo deixa entender que a história era antiga (?). A título de curiosidade, ainda estava Idrisi concluindo as suas obras e já a Lisboa que descrevia (e visitou, de facto) tinha fechado aquele capítulo da sua história (domínio árabe) para sempre…
Por outro lado, Idrisi dá-nos a idéia que a história dos Aventureiros seria bastante popular e talvez até afamada além Al-Gharb (o ocidente da Península Ibéria conquistada), embora seja de sua autoria a única fonte até hoje conhecida. É certo que muitas fontes se terão perdido com a Reconquista, mas Idrisi indica que os Aventureiros eram gente comum, pelo que é natural que as suas aventuras tenham ficado gravadas “apenas” na voz do povo. Isso até 1147, embora não tivesse de ser, obrigatoriamente. De facto, muita coisa permaneceu da memória colectiva da Lisboa árabe, em especial da sua comunidade moçárabe (cristãos arabizados - se seria a maior da cidade, é discutível, mas que seria bastante numerosa, sem dúvida).
Quanto à identidade dos Aventureiros, não ficaram os nomes (sendo gente comum, é o mais natural), mas refere Idrisi a sua recordação na toponímia, em rua (ou ruela, mais provavelmente) lá para os lados de Alfama (pela referência aos banhos quentes). Lembraria a rua o local onde viviam (portanto, em Alfama)?
Apesar de tratar-se de gente comum, estou em crer que não seriam moçárabes (sem prejuízo de terem alguma origem moçárabe) mas sim “mouros” autênticos – que os havia em Alfama, estando os moçárabes afastados do centro, nos respectivos arrabaldes (embora também se dedicassem ao mar, sem dúvida). De qualquer forma, com a definitiva reconquista cristã da cidade, perdeu-se o nome da rua e também se perdeu a memória daquela aventura, reforçando a minha laica tese de que não seriam moçárabes, pois estes ainda conseguiram manter vivas muitas tradições – veja-se as raízes moçárabes da lenda de S. Vicente. A própria Alfama terá sido despida da “mourama”, depois confinada à Mouraria (ou expulsa para sempre da cidade, provavelmente).
Li algures que os oitos aventureiros seriam afinal oito fugitivos cristãos (incluindo um Arcebispo e vários Bispos), que teriam feito a viagem por altura da conquista árabe de Lisboa (Séc. VIII). Desconheço por completo fonte credível que o confirme, para além de que a versão de Idrisi é quase totalmente incompatível com tal versão (tal fuga só poderia ter corrido pior se tivessem acostado ao Egipto ou à Palestina!).
Seria a versão de Idrisi uma deturpação de uma estória original cristã ou moçárabe? Sinceramente, não me parece. Talvez esta versão, essa sim, possa ter resultado de deturpação posterior, de algum escriba português, que tendo ficado a conhecer a lenda dos Aventureiros, a “cristianizou” (fruto de preconceito que ainda hoje sobrevive).
Não há evidência que ligue directamente a viagem dos Aventureiros à origem dos Descobrimentos, mas sim, muita coisa em comum (digamos que uma ligação indirecta muito forte!). Se as próprias obras de Idrisi não eram bem conhecidas à época dos Descobrimentos (parece que não), algumas das suas fontes talvez, bem como fontes árabes contemporâneas que sim, talvez conhecessem a obra. Mas a viagem dos Aventureiros, em concreto, só nos aparece revelada e relembrada séculos mais tarde (com a redescoberta das obras de Idrisi).
Comum é o desejo, de saber “o que continha o Oceano e quais eram os seus limites”. Razões políticas, estratégicas ou religiosas aparte, sempre acreditei que uma das principais motivações dos Descobrimentos teria sido aquela curiosidade, que era mais do que científica. No Mediterrâneo, tudo era conhecido e (relativamente) pacífico. Para os que chegavam ao Ocidente (da península Ibéria ou Magrebe), fenícios, romanos e árabes, o Atlântico era estranho, aterrador, avassalador. Na verdade o Oceano para esses não era um mar maior (que o Mediterrâneo, nomeadamente), mas uma antecâmara das orlas do mundo, onde não havia mais terra, para além das quais não valia a pena ir, sobretudo porque não havia a opção de regressar (acreditavam). O próprio Idrisi, mesmo admitindo a existência das tais ilhas (mesmo em grande número), não se convenceu do contrário:
«O oceano rodeia os limites terrestres e tudo para além daí é desconhecido. Ninguém foi capaz de verificar o que quer que fosse, devido às dificuldades e perigos da navegação, a sua grande obscuridade, profundidade e tempestades frequentes; devido ao medo dos peixes monstruosos e terríveis ventos; no entanto existem muitas ilhas, umas com gente e outras desabitadas. Nenhum marinheiro se arrisca a entrar nessas águas profundas, e se alguns o fizeram, foi percorrendo ao longo das costas terrestres, receosos de se afastar demasiado. As ondas deste oceano, embora movendo-se com altura de montanhas, mantêm-se inteiras e sem se quebrar, porque se se quebrassem, seria impossível para um barco ultrapassá-las»
Assim se conformava quem cá chegava, ou quem por cá passava (diga-se que Idrisi acaba por não ser muito animador para futuros exploradores). E quem cá ficou?
Para quem habitou e habita esta “Ocidental Praia”, viver de frente para o fim do mundo (e de costas para o dito) era (e é) pena difícil de conformar. Os Aventureiros, como outros depois deles (e também antes) sentiram tal angústia. Imbuídos do tal espírito de “Mugharrirunes”, fizeram-se ao mar.
Embora nunca venhamos a saber exactamente quem eram aqueles heróis, a cidade de Lisboa ainda hoje os lembra, não em Alfama, mas no actual Parque das Nações, onde foi aberta uma nova “Rua dos Aventureiros” (Idrisi ficaria perdido!).
Por ironia do destino, a Ceuta natal de Idrisi também seria conquistada pelos portugueses (1415), tomada essa que marcou o início da nova gesta, de novos aventureiros lisboetas (ler neste mesmo blogue, sobre a origem da bandeira de Lisboa… e da de Ceuta, desde então e até hoje imagem da primeira).