sábado, 1 de agosto de 2009

Os Aventureiros, uma outra perspectiva

No seguimento do artigo anterior, trago para este blogue uma opinião diversa - e céptica - quanto à famosa lenda dos oito aventureiros lisboetas que, no tempo do domínio árabe, lançaram-se pelo Oceano fora, supostamente à descoberta. A opinião é de Garcia Domingues, ilustre historiador e filósofo arabista (infelizmente já falecido), em entrevista à revista Leonardo, dedicada à Filosofia (republicada recentemente):

L – Segundo as suas afirmações, as Descobertas não tinham qualquer finalidade? Nem a da constituição do V Império?

GD – Há uma mistificação da história das Descobertas, à qual estão a associar conotações políticas para justificar certa política anti-patriótica desenvolvida pelo Estado. Actualmente, os nossos dirigentes políticos têm vergonha de afirmar que fizémos a expansão, porque estão a encolher Portugal. Nós, Portugueses, estamos a voltar a casa, perdido o Ultramar. Não descobrimos nada. Não partíamos para resolver este problema: o que existe para além do mar? Nunca fizémos uma coisa destas. O que houve foi a expansão, um fenómeno de expansão. A primeira acção consistiu na tomada da Ceuta, uma vez que tinhamos chegado ao Algarve. Só depois, o Infante D. Henrique se instalou em Sagres, dando início às navegações até aos Açores e Madeira. O desejo de ultrapassar o território que possuíamos deu origem à expansão do domínio político, religioso e económico. Fomos à procura da cana-de-açucar, à procura do ouro e dos produtos exóticos. O que não significa que não houvesse pessoas que contribuíram para a expansão com a preocupação das Descobertas que resultam da ambição. É evidente que se fizeram algumas, mas foram sempre secundárias em relação às finalidades da expansão. As navegações determinaram o desenvolvimento das ciências naúticas e a invenção de instrumentos novos, como o nónio de Pedro Nunes. A expansão é algo de muito natural aos povos. Principalmente se há uma explosão demográfica…

L – No entanto, os Portugueses de Quinhentos não eram assim tantos…

GD – Certo. Mas as possibilidades da criar fontes de riqueza eram menores do que existem nos nossos dias. A expansão era encarada como uma possibilidade de vida.

L – Esse movimento não tinha uma finalidade superior?…

GD – Sim, de acordo, há uma finalidade, mas só foi percebida posteriormente pela história. É com a história que se formam as ideias nacionais e os ideais de um povo que, porventura, podem indicar uma finalidade. Por assim dizer, os povos nascem, crescem e morrem. Criam uma espécie de força própria. Entre nós, foi a força expansiva. Mas essas ideias mudam, embora se verifiquem determinadas constantes. Já existiam povos no território antes da formação de Portugal, mas só no século XV surgiu a vocação da marinhagem.

L – Os árabes contribuíram para essa gesta?

GD – Essa influência foi diminuta. Os árabes preocupavam-se bastante com os limites geográficos dos territórios e da astronomia, e os seus conhecimentos foram úteis às navegações. A propósito recordo aos senhores, a famosa lenda dos Aventureiros de Lisboa segundo a qual navegadores árabes aventuraram-se no mar oceano, procurando o seu fim. É mentira. No século XI, após as invasões normandas, o Amir de Córdova ordenou a constituição de uma poderosa esquadra muçulmana, sediada em Sevilha, que começou a ser construída em diversos pontos da região compreendida entre Almeria e Huelva. Por essa altura, formou-se na Alfama de Lisboa um núcleo de resistência aos normandos. A sua acção consistia na vigilância costeira assinalando a passagem dos barcos que pretendiam atacar populações do Sul. É claro que nessas missões, digamos assim, de espionagem, alguns navios tanto se afastaram da costa que se perderam. Um desses almirantes deu com as Canárias. Deste modo, nasceu a ideia lendária de que os navegadores partiam para encontrar o mar com fim. Mas essa não foi uma preocupação real. A ideia de expansão e de navegação surgiu mais tarde, já com o território português definido. Os Portugueses foram navegadores e marinheiros. Quanto ao Quinto Império tenho a dizer o seguinte: um mito! Trata-se de uma magicação do Padre António Vieira que não corresponde a coisa alguma.



É notório o cepticismo (relativo) de Garcia Domingues quanto à influência árabe em Portugal, a que não escapa o episódio dos Aventureiros (como o próprio reconhece na entrevista, soava bastante anti-árabe... para um arabista). Quanto ao referido episódio, contraria muito do que registou Idrisi vários séculos antes (e poucos depois do sucedido), o que não deixa de ser estranho. A rota seguida pelos Aventureiros, a ser verdadeira, não é coerente com a tese apontada (salvo manifesta azelhice dos marinheiros em causa). Por outro lado, não se entende a completa omissão quanto à ameaça normanda, que existiu de facto (profusamente documentada em outras fontes).
Quanto ao real desejo dos marinheiros, concordo, nem Idrisi nem nós podemos garantir que desejavam descobrir e conhecer. Quem sabe, não tenha sido aquela história, uma fanfarronice dos "Mugharrirun"? Não seriam os primeiros navegantes a fantasiar sobre as suas viagens!

Talvez tenhamos um problema de fontes, hoje conhecidas, mas às quais provavelmente Idrisi não teve acesso directo. Ou então, alguma confusão. Há outra lenda (?) que fala da viagem de um tal Khaskkash, almirante da esquadra omíada (este sim, com provas dadas contra os normandos) que, partindo da Andaluzia, terá atravessado o Oceano, supostamente atingindo outro continente, para além das Canárias. Haverá relação entre as histórias? Quem sabe...