quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Restelo

Torre de Belém... ou Baluarte do Restelo


É graças à minha filiação "clubística" que nutro especial carinho por esta zona da cidade (embora nunca lá tenha vivido), ao estudo da qual já dediquei algumas linhas, noutro espaço.

Qual é a origem do nome? E afinal, o que é o Restelo? Será descabida esta última questão?

Desde há várias décadas que o Restelo é reconhecido – pelo menos aos olhos do cidadão “comum” – como sendo a zona a Norte e Oeste de Belém, ocupada maioritariamente por vivendas e condomínios, e por isso tida como “nobre” ou de “luxo” (actual ou datado). O Estádio do meu Belenenses, baptizado “do Restelo”, acaba por demarcar o extremo a sudoeste dessa zona. Abaixo e para nascente, seguindo a Rua de Belém, ninguém duvida que está Belém, frente ao Tejo, sobre antiga praia.
No fundo, a criação da Freguesia de São Francisco Xavier veio dar mais algum sentido a esta separação.

No entanto, se olharmos para a história – para a origem – nem tudo é assim tão claro. Que o nome de Belém se deve à invocação de Santa Maria de Belém, no e pelo Mosteiro dos Jerónimos, bem como pelo templo Henriquino que o precedeu, é facto que não merece muitas dúvidas. Mas, que a própria zona do actual Mosteiro, frente ao rio, era conhecida como “praia do Restelo”, também é facto, também antigo e bem documentado (entre outros, pelo grande Fernão Lopes).
Temos então que, se o Restelo e Belém não são afinal a mesma coisa, pelo menos Belém acabou por ser uma parte do Restelo que ganhou nome e fama próprios.
Se atendermos à hipótese mais conhecida e consensual quanto à origem daquela toponímia, faz-se um pouco mais de luz sobre esta “transição”.

Em página da Paróquia de Santa Maria de Belém podemos ler que:

“Em meados do século XV, o Infante D. Henrique mandou ampliar uma pequena ermida que tinha sido fundada, na zona do Restelo, junto ao Tejo, sob a invocação de Nossa Senhora da Estrela, protectora dos navegantes. Enriquecendo o sentido da primeira invocação, o Infante dedicou a nova Igreja a Santa Maria de Belém.”

Assim se entende a ligação com a história da Natividade de Jesus Cristo, por intermédio da Estrela, a dos Reis Magos, mas também de Maria, mãe de Jesus, ela própria Estrela dos Mares, guia e protectora dos navegantes. Estes nomes e símbolos têm sido objecto de interpretação de várias correntes e “ciências”, ditas da “mística”, do “oculto”, na convicção de que escondem significados só acessíveis a uns. Sendo de interesse, são áreas do conhecimento que não domino minimamente – sobre as quais não posso elaborar muito, portanto.

Mas, no site da Agência Ecclesia, da Igreja Católica Portuguesa, encontramos mais elementos de interesse para a nossa questão:

“O nome deste lugar [Restelo], um povoado modesto mas estrategicamente vocacionado para (ante)porto de Lisboa, confunde-se com o desse primitivo santuário dedicado a Nossa Senhora da Estrela.

A interpretação mística é directa: Nossa Senhora era a luz para os navegantes que desejavam entrar sem perigo na barra de Lisboa; a Estrela evocava o misterioso astro que conduziu os Magos. E quando o Infante D. Henrique mandou edificar no Restelo essa igreja dedicada a Nossa Senhora de Belém, não foi o local do nascimento de Cristo que quis evocar – o presépio aonde acorreram os pastores e os anjos deram glória a Deus – mas antes o ponto de encontro das gentes com Cristo, Sacerdote, Profeta e Rei, para o qual se dirigiram aquelas três personagens míticas e ofereceram ouro, incenso e mirra.”

Esquecendo propositadamente as outras questões, encontramos agora e finalmente uma justificação, geralmente aceite, para o nome “Restelo”: surgiu por corrupção de Estrela (ou de “SenhoRa-Estrela”). Bem próxima anda outra hipótese, muito semelhante (por conotações marinheiras mas também espirituais), pela qual a origem se deve à palavra “Setestrelo”, que se refere à constelação da Ursa Maior, muito importante para quem queira encontrar a Estrela do Norte, guia dos navegantes (isto no Hemisfério Norte, obviamente).


Estádio do Restelo... casa d'Os Belenenses

Ninguém ou mesmo nada sou para pôr em causa aquela primeira hipótese (“Senhora da Estrela”), que é em quase todos os seus aspectos bem plausível e “encaixa” perfeitamente numa miríade de sentidos, mais claros ou mais obscuros. No entanto, creio que encontrei (ou redescobri?) uma alternativa, no mínimo, muito interessante.

A alternativa em questão pouco ou nada remete para o religioso ou espiritual, nem tão-pouco para as obras régias. Fica bem, isso sim, ao lado de uma Junqueira ou de Pedrouços, topónimos de fácil e óbvia interpretação. Por outro lado, a suposição de corrupção de uma outra palavra, ainda que possa ser também antiga (embora não tanto como a lenda de Ulisses em Lisboa), é algo que merece algumas reservas, sobretudo tratando-se de nomenclatura religiosa (será assim tão aceitável, passar de “Senhora da Estrela” para “Restelo”?).

Porque se dizia e escrevia “Rastelo” ou “Rastello”, palavra essa que tinha (e tem) outro significado em português… e que sobrevive, precisamente, na palavra “restelo”?

Vejamos o que nos diz este texto, sobre os famosos “12 trabalhos” do linho (Museu da Agricultura de Fermentões):

“(…) [sobre o acto de] assedar: depois de limpas as impurezas as fibras são separadas por cumprimentos e espessuras. As mais longas e finas formam o linho, as mais curtas e grosseiras, a estopa. Para isso usam-se os sedeiros, instrumentos com dentes de aço finos e serrados, nos quais se passam as estrigas de linho. A estopa que fica, antes de ser fiada tem que se submeter a outra operação. Em manadas a estopa é passada no restelo, uma espécie de pente largo de madeira com dentes de aço grandes e pontiagudos. Depois de ‘penteada’ a estopa está pronta a ser fiada.”

E agora, o que nos diz o dicionário Priberam:

Restelo: rastelo; azeitonas caídas no chão antes de varejadas, ou espalhadas por descuido dos ranchos [possível mas improvável, no nosso caso].
Rastelo: fieira de dentes de ferro por onde se passa o linho para se lhe tirar a estopa; grade com dentes de pau, para aplanar a terra lavrada;
Da mesma maneira existem os verbos “restelar” ou “rastelar”, cujo acto por sua vez dá origem ao substantivo “restelo” ou “rastelo”.

Note-se que, no Brasil, a palavra “restelo” surge muitas vezes associada ao significado acima referido para “rastelo”, como utensílio agrícola ou de jardinagem. Aliás, não é invulgar que o camoniano “Velho do Restelo” passe, ainda que só por sugestão… por jardineiro.

Ainda na área do português, ou melhor, do galego-português, encontramos também matéria interessante. Os significados que encontramos no português, relativos ao trabalho do linho, encontramo-los também no galego actual, em palavras semelhantes: “rastrelo” ou “restrelo”. Variações que, curiosa e precisamente, também chegaram a ser utilizadas pelos cronistas portugueses para designar o “nosso” Restelo.
Mas há mais ainda, falando da Galiza: também lá, na zona de Finisterra, há uma praia do Restrelo!

Ora, tendo o mesmo significado, não será a origem a mesma, ligada ao trabalho do linho?
Ou será a origem a mesma, mas a outra, se atendermos ao Campus Stellae (de Compostela)?

A segunda hipótese parece-me claramente arriscada, embora sedutora, sobretudo se enveredarmos pela descoberta de subtis e complexos significados (como os que se escondem nos mais elaborados traços dos Jerónimos, ao que parece).

Quanto à primeira hipótese, fica por explicar um aspecto essencial. Se o nome daquelas praias se deve ao linho… como e porquê?
É uma conjectura, mas com pistas promissoras: quer na região da Galiza em causa, quer no “nosso” Restelo, a plantação e tratamento do linho eram de facto actividades comuns, favorecidas pela proximidade de grandes massas de água (a humidade, ao que vim a saber, é factor importantíssimo). Para além disso, ainda hoje podemos encontrar, entre a Rua de Belém e a Rua Vieira Portuense, uma “Travessa das Linheiras” (fiel à tradição local de associar a toponímia a ofícios e indústrias – Travessa dos Ferreiros, Travessa das Galinheiras…)!
Considerando ainda que aquelas casas e ruas são, na sua grande maioria, quinhentistas, temos assim uma referência bem antiga, que por sua vez poderá remeter para épocas mais remotas (lembro por exemplo a popularidade do linho entre os árabes, bem como, por altura da sua ocupação, o facto de o Restelo ter sido uma zona eminentemente rural e agrícola).

E estariam então ali as linheiras, à vista da praia, a separar a estopa do linho… ocupadas com o seu “restelo”? E como poderiam não sabê-lo príncipes, clérigos e cronistas? Poderiam muito bem, penso eu, na mesma medida em que o próprio povo esqueceu e esquece a(s) origem(s).

Fontes:
Priberam
Paróquia de Santa Maria de Belém
Agência Ecclesia
Museu Agrícola de Fermentões