terça-feira, 4 de abril de 2006

Apontamentos sobre a História de Lisboa (II): A Fundação

Se bem se recordam, no post anterior desta série analisámos as informações que nos deixaram os romanos sobre a fundação de Lisboa. Estas permitiam concluir, em primeiro lugar, que Olissipo já existia aquando da sua chegada (facto este sem margem para dúvidas). Por outro lado, pondo em relevo as fragilidades da lenda que atribuía a fundação ao herói grego Ulisses, concluímos que muito dificilmente Lisboa teria sido fundada pelos gregos, mas também que os romanos (e gregos), afinal, não conheceriam a origem da cidade ou que, por alguma razão, não revelaram para a posteridade o que poderiam saber.

Posto isto, resta-nos seguir uma outra hipótese que veio a ganhar mais força em tempos recentes. Embora não seja naturalmente suportada por qualquer documentação da época ou próxima (ou referência epigráfica, que seja - tenha-se em atenção que tratava-se da "alvorada" do uso da escrita), baseia-se em importantes achados arqueológicos e por consequência em deduções que, não sendo assim comprovadas por completo, apresentam uma solidez "científica" bem mais interessante. Trata-se da hipótese da fundação de Lisboa pelos fenícios.
Por competirem directamente pelo domínio do Mediterrâneo, sabemos que romanos e gregos não tinham especial gosto em realçar os feitos de um povo de origem semita, para mais protegido - a determinada altura - pelos egípcios. Mas sabemos também que Lisboa existia e comunicava já desde há muito com povos do Mediterrâneo oriental ou, pelo menos, com intermediários fortemente ligados e influenciados pelos mesmos.

Ao longo de toda a costa portuguesa descobriram-se vestígios/artefactos de origem fenícia, oriental ou orientalizante. Por outro lado existem fortes indícios de que os fenícios terão navegado com alguma frequência bem para além do Estreito de Gibraltar, atingindo a costa atlântica de França, possivelmente as Ilhas Britâncias e até mesmo a Escandinávia. Aliás pode mesmo afirmar-se que em matéria de engenharia naval gregos e romanos pouco vieram acrescentar ao notável e revolucionário legado dos fenícios, só comparável ao que árabes e portugueses conseguiriam séculos mais tarde.

A juntar a tudo isto, sabemos também que os fenícios estabeleceram uma série de entrepostos e colónias em boa parte do Mediterrâneo, incluindo a Península Ibérica, sendo que a situação e topografia dos locais escolhidos seguia um padrão interessante para a nossa questão. Começando logo pela própria origem, podemos verificar que as "cidades-mãe" fenícias de Tiro e Sídon, por exemplo, situavam-se em saliências costeiras com boa protecção, não só face a ameaças marítimas, mas também face ao interior (no caso de Tiro, até foi durante muito tempo uma ilha).
Não muito diferente estava Cartago (do fenício Kart-Hadash, hoje em Tunis, na Tunísia), uma das primeiras e principais (senão a principal) colónias "ultramarinas" dos Fenícios, instalada numa península ladeada por uma grande e abrigada baía. Gadir (Cádiz), por sua vez, era a maior colónia "ibérica" e encontrava-se numa ilha de forma alongada e paralela à costa (também só posteriormente ligada ao continente, no seu extremo oriental).
Por aqui poderemos imaginar uma Lisboa fenícia, abrigada do mar junto a uma grande enseada (o estuário do Tejo), protegida do lado interior por colinas e serranias. Uma cidade que seria ponto de escala perfeito (e raro) na difícil costa atlântica, a caminho dos mares do Norte. Uma cidade na foz do maior rio da península, cuja navegabilidade ao tempo permitia - associada com o domínio do Guadiana e do Guadalquivir - fazer fluir trocas comerciais com quase todo o interior.
Chamaram-na, supõe-se agora, "Allis Ubbo", a tal "enseada amena".

No entanto, mesmo que o referido acima tenha muita lógica, outros dados "baralham" significativamente a questão. Se é certo que os fenícios e os seus produtos chegaram a Lisboa, não existem indícios que permitam afirmar que Lisboa tivesse sido fundada como cidade, colónia ou até como mero entreposto fenício. Pelo contrário, grande número de especialistas argumenta que no actual território português não terão existido quaisquer colónias fenícias, mas sim povoados ou cidades fortemente relacionados e/ou influenciados pelas colónias de Gadir e Cartago.

A expansão terriorial fenícia (como a Cartaginesa ou púnica) nunca terá tido grande expressão no nosso território. E mesmo a importância de Lisboa como ponto fundamental de uma intensa navegação atlântica poderá não passar de uma conjectura. Apesar de terem sido marinheiros exímios e criadores revolucionárias embarcações, a valia dos fenícios terá sido mais evidente no próprio Mediterrâneo. Com isto não se invalidam os relatos que apontam para uma pioneira e vasta exploração das costas atlânticas (de Europa e África). Poderão e deverão ser verdadeiros. No entanto poderão não ter passado disso mesmo, viagens de exploração, pontuais e sempre arriscadas. Os fenícios (bem como os romanos, gregos, por muitos séculos depois) nunca terão conseguido dominar suficientemente as águas do Atlântico por forma a estabelecer rotas marítimas regulares. Navegavam à vista da costa, o que, em caso de violentas tormentas (como são vulgares), impossibilitava progressos fáceis.

Por outro lado existem provas significativas de que o comércio de Gadir com os territórios do Atlântico Norte era feito sobretudo por via terrestre, com a intermediação de povos indígenas. Uma das rotas, que se manteve até ao tempo dos romanos, cruzava precisamente o Guadiana até chegar à costa norte de Espanha, onde por sua vez desembarcavam os produtos trazidos pelos povos da costa europeia do Atlântico Norte e das Ilhas Britânicas. O comércio com a Lisboa de então, que de facto existia, também seria em grande parte realizado por via terrestre, seguindo uma rota que entroncava dessa rota principal, atravessava o actual Alentejo e terminava na outra "banda" do Rio Tejo.

Apesar de preterida, também haveria a rota marítima, ao que parece, mas mesmo assim não suporta a hipótese de uma Lisboa fenícia. Invocando de novo os dados arqueológicos obtidos até à data, é bem mais provável que um assentamento fenício, a existir, fosse localizado... na península de Setúbal. O melhor "candidato" a essa condição até hoje descoberto (embora, repetimos, não infalivelmente comprovado) é o antigo povoamento de Abul, a norte de Alcácer do Sal. Situava-se em pleno estuário do Sado e estava protegido pela península de Tróia, bem ao "estilo" dos fenícios.
Outro local de referência, de estudo mais recente e ainda mais próximo de Lisboa, é a Quinta de Almaraz (em Almada). Tendo em conta as preferências dos fenícios, a sua situação parece-nos mais perfeita ainda. É até possível que já nessa época a zona adjacente de Cacilhas fosse local privilegiado para reparações navais, como se mantém ainda hoje. Dali também se dominava o estuário do Tejo, para além de ser mais fácil a ligação terrestre ao Sul da Península, à rota "alentejana" com Gadir (seria ali que terminava?).

Completando o panorama, alguns estudiosos afirmam que Lisboa era de facto um centro importante à época dos fenícios, mas seria habitada por outros povos, que embora habituados ao contacto com o "mundo" mediterrânico (com fortes ligações à pretensa feitoria instalada na outra margem), teriam uma origem não-mediterrânica.
Esta hipótese, até mais ver, parece-nos a mais credível.

Quem seriam? E desde quando?
É o que vamos tentar ver noutros artigos, mas dispomos de muito pouca informação.
Em bom rigor, talvez nunca saibamos exactamente quem e quando fundou Lisboa. Com inúmeros terremotos e variadas ocupações, talvez nem a própria arqueologia alguma vez nos possa providenciar uma chave ou elo perdido. Afinal de contas, a zona (incluindo sítios da cidade actual) foi ocupada desde a pré-história...