segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Lisboa por Miguel de Cervantes Saavedra

"(...) disse um grumete que na gávea grande ia descobrindo a terra:

-Alvíssaras, senhores, alvíssaras peço e alvíssaras mereço! Terra! Terra! Embora melhor diria céu!, céu!, porque sem dúvida estamos na paragem da famosa Lisboa."

Cujas novas arrancaram dos olhos de todos ternas e alegres lágrimas, (...) porque lhes pareceu que já haviam chegado à terra prometida que tanto desejavam.

(...)

-Agora saberás, (...) do modo que hás-de servir a Deus, com outra relação mais copiosa, embora não diferente, daquela que eu te tenho feito; agora verás os ricos templos em que é adorado; verás juntamente as católicas cerimónias com que se serve, e notarás como a caridade cristã está em seu auge. Aqui, nesta cidade, verás como são verdugos da doença os muitos hospitais que a destroem; e o que neles perde a vida, envolto na eficácia de infinitas indulgências, ganha a do céu. Aqui o amor e a honestidade dão as mãos, e passeiam juntos, a cortesia não deixa que se chegue a arrogância, e a bravura não consente que se lhe aproxime a cobardia. Todos os seus moradores são agradáveis, são corteses, são liberais e são apaixonados, porque são discretos. A cidade é a maior da Europa e a de maiores tratos; nela se descarregam as riquezas do Oriente, e a partir dela se espalham pelo universo; o seu porto é capaz, não só de navios que se podem reduzir a número, senão de selvas ambulantes de árvores que os dos navios formam; a formosura das mulheres admira e enamora; a bizarria dos homens pasma, como dizem eles; finalmente, esta é a terra que dá ao céu santo e copiosísimo tributo."

(do Livro Terceiro da História dos Trabalhos de Pérsiles e Sigismunda, trad. pelo De Lisboa)